17 maio 2008

VERSOS SOBRE O PASSAPORTE SOVIÉTICO


VERSOS SOBRE O PASSAPORTE SOVIÉTICO

Podia devorar
como um lobo
toda a burocracia,
não é comigo
o respeito
por mandatos,
e mando
para o diabo
que os carregue
todos os «papéis».
Menos aquele...

Passando ao longo
dos compartimentos
e cabinas,
um funcionário,
e que polido,
avança.
Cada um apresenta o passaporte,
e eu,
dou
o meu
pequeno bilhete escarlate.

Para alguns passaportes
há sorrisos,
para outros -
vontade de os cuspir.
Têm, por exemplo,
o direito ao respeito
os passaportes
com o leão inglês
em dois lugares.
Devorando
com os olhos o grande personagem,
fazendo saudações e curvaturas
pega-se,
como numa gorjeta,
no passaporte
de um americano.
Para o polaco
há o olhar
da cabra frente ao edital.
Para o polaco -
uma fronte enrugada
num elefantismo policial -
de onde vem este
e que são
estas inovações na Geografia?
Mas é sem voltar
a abóbora-cabeça,
sem experimentar
qualquer emoção forte,
que se aceita
sem pestanejar
os papéis do dinamarquês
e dos suecos
de todas
as espécies.

Súbito,
como lambida
pelo fogo,
a boca
do cavalheiro
se torce.
O senhor
funcionário
tocou
a púrpura deste meu passaporte.
Toca nele
como se fosse bomba,
toca nele
como se fosse ouriço,
toca nele
como em cobra cascavel,
de vinte dentes,
de dois metros e mais de comprimento.
Cúmplice
piscou
o olho do carregador
que está pronto
a carregar, de graça as minhas malas.
O agente
contempla o chui,
e o chui
o agente.

Com que volúpia
me teria,
a espécie policíaca,
batido, crucificado,
porque
tenho nas mãos,
trazendo foice
e trazendo martelo,
o passaporte soviético.

Podia devorar
como um lobo
toda a burocracia,
não é comigo
o respeito
por mandatos,
e mando
para o diabo
que os carregue
todos os «papéis»,
menos aquele...

Das minhas
profundas algibeiras tirarei
o atestado
deste enorme viático.
Leiam-no bem,
Invejem -
eu
sou um cidadão
da União Soviética.

Maiakovski

Rússia

E então, que quereis?...

Maiakóvski


Fiz ranger as folhas de jornal

abrindo-lhes as pálpebras piscantes.

E logo

de cada fronteira distante

subiu um cheiro de pólvora

perseguindo-me até em casa.

Nestes últimos vinte anos

nada de novo há

no rugir das tempestades.

Não estamos alegres,

é certo,

mas também por que razão

haveríamos de ficar tristes?

O mar da história

é agitado.

As ameaças

e as guerras

havemos de atravessá-las,

rompê-las ao meio,

cortando-as

como uma quilha corta

as ondas.

(1927)


Vladímir Maiakóvski nasceu e passou a infância na aldeia de Bagdádi, nos arredores de Kutaíssi (hoje Maiakóvski), na Geórgia - Rússia. Após a morte súbita do pai, a família ficou na miséria e transferiu-se para Moscovo, onde Vladímir continuou seus estudos. Fortemente impressionado pelo movimento revolucionário russo e impregnado desde cedo de obras socialistas, ingressou aos quinze anos na facção bolchevique do Partido Social-Democrático Operário Russo. Detido em duas ocasiões, foi solto por falta de provas, mas em 1909-1910 passou onze meses na prisão. Entrou na Escola de Belas Artes, onde se encontrou com David Burliuk, que foi o grande incentivador de sua iniciação poética. Os dois amigos fizeram parte do grupo fundador do assim chamado cubo-futurismo russo, ao lado de Khlébnikov, Kamiênski e outros. Foram expulsos da Escola de Belas Artes. Procurando difundir suas concepções artísticas, realizaram viagens pela Rússia. Após a Revolução de Outubro, todo o grupo manifestou sua adesão ao novo regime. Durante a Guerra Civil, Maiakóvski dedicou-se a desenhos e legendas para cartazes de propaganda e, no início da consolidação do novo Estado, exaltou campanhas sanitárias, fez publicidade de produtos diversos, etc. Fundou em 1923 a revista LEF (de Liévi Front, Frente de Esquerda), que reuniu a “esquerda das artes”, isto é, os escritores e artistas que pretendiam aliar a forma revolucionária a um conteúdo de renovação social. Fez inúmeras viagens pelo país, aparecendo diante de vastos auditórios para os quais lia os seus versos. Viajou também pela Europa Ocidental, México e Estados Unidos. Entrou frequentemente em choque com os “burocratas’’ e com os que pretendiam reduzir a poesia a fórmulas simplistas. Foi homem de grandes paixões, arrebatado e lírico, épico e satírico ao mesmo tempo. Suicidou-se com um tiro em 1930. A sua obra, profundamente revolucionária na forma e nas ideias que defendeu, apresenta-se coerente, original, veemente, una. A linguagem que emprega é a do dia a dia, sem nenhuma consideração pela divisão em temas e vocábulos “poéticos” e “não-poéticos”, a par de uma constante elaboração, que vai desde a invenção vocabular até o inusitado arrojo das rimas. Ao mesmo tempo, o gosto pelo desmesurado, o hiperbólico, alia-se na sua poesia à dimensão crítico-satírica. Criou longos poemas e quadras e dísticos que se gravam na memória; ensaios sobre a arte poética e artigos curtos de jornal; peças de forte sentido social e rápidas cenas sobre assuntos do dia; roteiros de cinema arrojados e fantasiosos e breves filmes de propaganda. Tem exercido influência profunda em todo o desenvolvimento da poesia russa moderna. (Boris Schnaiderman in Poesia Russa Moderna, Editora Brasiliense, 1985).

Poema extraído do livro Maiakóvski — Antologia Poética, Editora Max Limonad, 1987, tradução de E. Carrera Guerra.

14 março 2007

Mais Portugal

Álvaro de Campos

Adiamento

Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não...
Não, hoje nada; hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjectividade objectiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço antecipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um eléctrico...
Esta espécie de alma...
Só depois de amanhã...
Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte...
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos...
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã...
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro...

Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.
Só depois de amanhã...
Quando era criança o circo de domingo divertia-me toda a semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância...
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático
Serão convocadas por um edital...
Mas por um edital de amanhã...
Hoje quero dormir, redigirei amanhã...
Por hoje, qual é o espectáculo que me repetiria a infância?
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
Que depois de amanhã é que está bem o espectáculo...
Antes, não...
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei.
Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã...
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...
Sim, talvez só depois de amanhã...

O porvir...
Sim, o porvir...

20 janeiro 2007

Albânia

Hymni i Flamurit é o hino nacional da Albânia. A letra foi escrita pelo poeta albanês Aleksander Stavre Drenova, tendo sido publicada originalmente como um poema na Liri e Shqipërisë (Liberdade da Albânia), um jornal albanês de Sófia, na Bulgária. A música do hino foi composta pelo compositor romeno, Ciprian Porumbescu.

Hymni i Flamurit (em Albanês)

Rreth flamurit të përbashkuar,

Me një dëshirë dhe një qëllim,

Të gjithë Atij duke iu betuar,

Të lidhim besën për shpëtim.

Prej lufte veç ay largohet,

Që është lindur tradhëtor,

Kush është burrë nuk friksohet,

Po vdes, po vdes si një dëshmor.

Në dorë armët do t'i mbajmë,

Të mbrojmë Atdheun në çdo vënd,

Të drejtat tona ne s'i ndajmë,

Këtu armiqtë s'kanë vënd.

Se Zoti vet e tha me gojë,

Që kombe shuhen përmbi dhé,

Po Shqipëria do të rrojë,

Për të, për të luftojmë ne.

Hino à bandeira (em Português)

Unidos em torno da bandeira,

Com um único desejo e intenção,

Deixem-nos dar a nossa palavra de honra

Combater pela nossa salvação

Só quem nasceu traidor

Foge à luta.

O bravo não desanima,

Mas cai, como mártir da nossa causa.

Manter-nos-emos de armas na mão,

Protegendo a nossa Pátria.

Não deixaremos perder os nossos direitos,

Não há aqui lugar para inimigos.

Pois disse o Senhor,

Que as nações seriam varridas da Terra,

Mas a Albânia sobreviverá,

Por sua causa, é por ela que lutamos.


19 junho 2006

Inglaterra

Oxford University, www.voudemochila.com.br

W. H. Auden, York, Inglaterra, 21/02/1907-29/09/1973

Funeral Blues

Stop all the clocks, cut off the telephone,
Prevent the dog from barking with a juicy bane,
Silence the pianos and with muffled drum
Bring out the coffin, let the mourners come.
Let aeroplanes circle moaning overhead
Scribbling on the sky the message He Is Dead,
Put crêpe bows round the white necks of the public doves,
Let the traffic policemen wear black cotton gloves.
He was my North, my South, my East and West,
My working week and my Sunday rest,
My noon, my midnight, my talk, my song;
I thought that love would last for ever: I was wrong.
The stars are not wanted now; put out every one;
Pack up the moon and dismantle the sun;
Paul away the ocean and sweep up the wood;
For nothing now can ever come to any good.
April1936

01 junho 2006

França


Marguerite Duras (1914-1996)

http://www.alovelyworld.com/webfranc/index2.html

Ontem à noite

Marguerite Duras

Tradução de Tereza Coelho

Ontem à noite, depois da sua partida definitiva, fui para aquela sala do rés-do-chão que dá para o parque, fui para ali onde fico sempre no mês de junho, esse mês que inaugura o Inverno. Tinha varrido a casa, tinha limpo tudo como se fosse antes do meu funeral. Estava tudo depurado de vida, isento, vazio de sinais, e depois disse para comigo: vou começar a escrever para me curar da mentira de um amor que acaba. Tinha lavado as minhas coisas, quatro coisas, estava tudo limpo, o meu corpo, o meu cabelo, a minha roupa, e também aquilo que encerrava o todo, o corpo e a roupa, estes quartos, esta casa, este parque. E depois comecei a escrever...

Textos Secretos, Quetzal Editores, 1992 - Lisboa, Portugal

http://zezepina.utopia.com.br/poesia/

EUA

Elizabeth Bishop (1911-1979)

Uma arte

Elizabeth Bishop
Tradução de Horácio Costa

A arte de perder não tarda aprender;
tantas coisas parecem feitas com o molde
da perda que o perdê-las não traz desastre.

Perca algo a cada dia. Aceita o susto
de perder chaves, e a hora passada embalde.
A arte de perder não tarda aprender.

Pratica perder mais rápido mil coisas mais:
lugares, nomes, onde pensaste de férias
ir. Nenhuma perda trará desastre.

Perdi o relógio de minha mãe.
A última,ou a penúltima, de minhas casas queridas
foi-se. Não tarda aprender, a arte de perder.

Perdi duas cidades, eram deliciosas.
E,pior, alguns reinos que tive, dois rios, um
continente. Sinto sua falta, nenhum desastre.

- Mesmo perder-te a ti (a voz que ria, um ente
amado), mentir não posso. É evidente:
a arte de perder muito não tarda aprender,
embora a perda - escreva tudo! - lembre desastre.

http://zezepina.utopia.com.br/poesia/
http://www.alovelyworld.com/webusa/uniteds.html

Ucrânia



Patrycia Kylyna, 1936

Árvore

Ela é peneira para a minha farinha de sol.
Ela é rede
pela qual foge o plâncton dos pássaros.
Ela é esponja, que na rasura do vale
se nutre de sombras.

Tradução do Ucraniano Wira Selanski

O grupo de Nova York. Colméia. Antologia lírica. Companhia brasileira de artes gráficas. Rio de Janeiro. 1993

Propaganda

Meus antepassados já estão mortos,
acabo de ouvir a notícia no rádio,
e espanto-me de existir.
Mas agora me lembro
que meus descendentes foram mortos há muito tempo,
que a notícia sobre eles já se tornou conto de fadas,
e não me espanto mais.

Tradução do Ucraniano Wira Selanski

O grupo de Nova York. Colméia. Antologia lírica. Companhia brasileira de artes gráficas. Rio de Janeiro. 1993

Na chaleira está o outono

Na chaleira está o outono.
As folhas castanhas de molho, qual chuva,
a água castahna esfria, qual geada,
torna-se amarga, como no brejo,
onde os arbustos amarelos colhem seus frutos.
Em cada xícara há uma poça, igual a um pequeno lago,
de onde fugiram os patos de olhos pardos.
Até em cada colherzinha
os sonhos das rãs trazem sombras.
Na chaleira está a velhice e Samarcanda.

Tradução do Ucraniano Wira Selanski

O grupo de Nova York. Colméia. Antologia lírica. Companhia brasileira de artes gráficas. Rio de Janeiro. 1993

http://poetry.uazone.net/portuguese.html

Tabela de tradução de ucrâniano
http://membres.lycos.fr/mazepa99/1page.htm

27 maio 2006

Chile

A casa "Sebastiana" de Pablo Neruda.

Pablo Neruda comprou a casa em construção, e depois convenceu alguns amigos artistas a comprar as partes laterais, reservando quatro níveis do centro para si. Cada artista construiu a sua casa ao seu gosto. A casa foi inaugurada em 1961. http://www.alovelyworld.com/webchili/htmgb/chl105.htm


Pablo Neruda

Thiago y Santiago

Thiago, A Santiago, como un vago mago,
has encantado en canto y poesía.
Sin San, has hecho de Santiago, Thiago,
un volantin de tu pajarería.

Al Este y al Oeste de Santiago
diste el Norte y el sur de tu alegría.
Muchos dones nos diste, un solo estrago:
llevaste el corazón de Anamaría.

Te perdonamos porque com tu bella,
de rosa en rosa y de estrella en estrella,
te llamará el Brasil a su desfile.

Te irás, hermano, com la que elegistes.
Tendrás razón, pero estaremos tristes,
que hará Santiago sin Thiago de Chile.

http://www.jornaldepoesia.jor.br/pneruda01p.html

26 maio 2006

Canadá

Montreal
http://pt.trekearth.com/gallery/North_America/Canada/photo389416.htm

Maria do Carmo Vieira-Montfils

POESIA ÚTIL

A minha poesia é inútil.
Mas continuo a escrever
talvez por algum motivo fútil...
Vaidade, prazer,
penitência, dor,
amor...
Versos existenciais,
outros circunstanciais,
não menos experienciais,
povoam meu pensamento.
Queria dar-lhes uma função
para o bem da humanidade,
para o seu desenvolvimento.
E que coubessem numa canção
com toda a serenidade.
Quem sabe se eu defendesse uma causa,
se eu falasse contra o racismo,
se eu lutasse contra o egoísmo
e o individualismo...
o mundo faria uma pausa?
A minha poesia é inútil.
Mas continuo a escrever
talvez por algum motivo fútil.

http://www.jornaldepoesia.jor.br/mmontfils.html#util

"SEM MOTIVO "
Queria um poema leve,
suave,
um poema como a neve,
branco.
Que, mesmo sendo manco,
fluísse solto, isento,
como o vento.
Um poema sem quotidiano,
sem nação,
como ouvir piano.
Um poema sem razão.

http://www.jornaldepoesia.jor.br/mmontfils.html#util

Pedro Tavares, N.º 24 - 7.º 2.ª
02 Junho, 2006 14:22


Hoje, finalmente, quero despedir-me de ti.
Não que não te queira mais ao meu lado,
para escutar-me, nas minhas aventuras, nas minhas descobertas,
nos meus lamentos e alegrias.
Em nome de um valor mais alto que o meu egoísmo,
deixo-te partir para os campos da felicidade,
com que sempre sonhaste.
Por tempo demais te retive.
Em sonhos, vi tua imagem,
senti teu abraço. Em livros que li,
em cartas que escrevi,
vi teu pensamento.
Encontrei-te no brilho das estrelas.
Sei que tudo tentaste para me consolar.
Mas precisei desse tempo
para aceitar tua partida.
E mesmo isto compreendeste.
Precisei sofrer muito,
mas afinal entendi que tens o teu caminho
que é só teu.
E que deve ser percorrido com alegria.
Perdoo-me de minhas culpas,
pois sei que me perdoas.
Seja a tua felicidade
a minha paz.
Hoje, finalmente, quero despedir-me de mim.
Não que não queira mais ser como eu era,
quando estavas aqui.
Em nome de um valor mais alto que a morte,
retomo a vida.
Maria do Carmo Vieira-Montfils

http://www.jornaldepoesia.jor.br/mmontfils.html#luto

Pedro Tavares, N.º 24 - 7.º 2.ª
02 Junho, 2006 14:53

Macau

http://pt.trekearth.com/gallery/Asia/China/photo238023.htm

Manuel Martins Gaspar Tomé

Essência da Saudade


Passaste por mim
de madrugada
etérea, levemente e foste sombra
Assim te perdi
quando entraste
na luz da manhã
Sinal visível da tua passagem
a rosa vermelha
deixada no chão
do meu peito

http://www.jornaldepoesia.jor.br/mmartins.html

S. Tomé e Príncipe

Maria Manuela Margarido

Memória da Ilha do Príncipe

Mãe, tu pegavas charroco
nas águas das ribeiras
a caminho da praia.
Teus cabelos eram lembas-lembas,
agora distantes e saudosas,
mas teu rosto escuro
desce sobre mim.
Teu rosto, liliácea
irrompendo entre o cacau,
perfumando com a sua sombra
o instante em que te descubro
no fundo das bocas graves.
Tua mão cor-de-laranja
oscila no céu de zinco
e fixa a saudade
com uns grandes olhos taciturnos.

(No sonho do Pico as mangas percorrem a órbita lenta
das orações dos ocãs e todas as feiticeiras desertam
a caminho do mal, entre a doçura das palmas).
Na varanda de marapião
os veios da madeira guardam
a marca dos teus pés leves
e lentos e suaves e próximos.
E ambas nos lançamos
nas grandes flores de ébano
que crescem na água cálida
das vozes clarividentes.

http://www.jornaldepoesia.jor.br/mmm01.html

18 maio 2006

Grécia

Naxos

Konstantiínos Kaváfis (Alexandria, 29/4/1863-29/4/1933)

O nome do poeta no alfabeto grego: Κωνσταντίνος Πέτρου Καβάφης,


MAR DA MANHÃ

Hei de deter-me aqui. Também eu contemplarei um pouco a natureza.
Do mar da manhã e do céu inube
azuis brilhantes, e margem amarela; tudo
belo e grandiosamente iluminado.

Hei de deter-me aqui. E me enganar que os vejo
(em verdade os vi por um momento ao deter-me)
e não também aqui minhas fantasias,
minhas recordações, as imagens do prazer.

[51, 1915]

ΘΑΛΑΣΣΑ ΤΟΥ ΠΡΩΙΟΥ

Εδώ ας σταθώ. Κι ας δω κ’ εγώ την φύσι λίγο.
Θάλασσας του πρωιού κι ανέφελου ουρανού
λαμπρά μαβιά, και κίτρινη όχθη· όλα
ωραία και μεγάλα φωτισμένα.

Εδώ ας σταθώ. Κι ας γελασθώ πως βλέπω αυτά
(τα είδ’ αλήθεια μια στιγμή σαν πρωτοστάθηκα)·
κι όχι κ’ εδώ τες φαντασίες μου,
τες αναμνήσεις μου, τα ινδάλματα της ηδονής.

[51, 1915]
Organização: R. M. Sulis, Tradução: R. M. Sulis, M. P. V. Jolkesky, A. T. Nicolacópulos

http://cavafis.i8.com/a051.htm

Lucian Blaga, Roménia

Primavera em Moeciu

http://pt.trekearth.com/gallery/Europe/Romania/page27.htm

Lucien Blaga

DORUL

Seţos iţi beau mirasma şi-ţi cuprind obrajii
cu palmele-amândouă, cum cuprinzi
în suflet o minune.
Ne arde-apropierea, ochi în ochi cum stăm.
Şi totuşi tu-mi şopteşti: "Mi-aşa de dor de tine!"
Aşa de tainic tu mi-o spui şi dornic, parc-aş fi
pribeag pe-un alt pământ.

Femeie,ce mare porţi în inimă şi cine eşti?
Mai cântă-mi înc-o dată dorul tău,
să te ascult
şi clipele să-mi pară nişte muguri plini,
din care înfloresc aievea — veşnicii.


SAUDADE
Sedento bebo teu perfume e seguro teu rosto
Com ambas as mãos, como quem segura na alma um milagre.
Queima-nos a proximidade, olhos nos olhos, como estamos.
E contudo sussurras-me: "Tenho tanta saudade de ti!"
Falas tão misteriosa e desejosa, como se eu estivesse exilado em
outro mundo.

Mulher,
que mares levas no peito, e quem és?
Canta ainda uma vez mais tua saudade, por que te ouça
e os instantes me pareçam botões prenhes de que florescessem de facto... eternidades.

De Poemele Luminii (Os Poemas da Luz), 1919

http://www.algumapoesia.com.br/poesia2/poesianet156.htm

Brasil

Búzios

Vinicius de Moraes

Procura-se um amigo

Não precisa ser homem, basta ser humano, basta ter sentimentos, basta ter coração. Precisa saber falar e calar, sobretudo saber ouvir. Tem que gostar de poesia, de madrugada, de pássaro, de sol, da lua, do canto, dos ventos e das canções da brisa. Deve ter amor, um grande amor por alguém, ou então sentir falta de não ter esse amor.. Deve amar o próximo e respeitar a dor que os passantes levam consigo. Deve guardar segredo sem se sacrificar.

Não é preciso que seja de primeira mão, nem é imprescindível que seja de segunda mão. Pode já ter sido enganado, pois todos os amigos são enganados. Não é preciso que seja puro, nem que seja todo impuro, mas não deve ser vulgar. Deve ter um ideal e medo de perdê-lo e, no caso de assim não ser, deve sentir o grande vácuo que isso deixa. Tem que ter ressonâncias humanas, seu principal objetivo deve ser o de amigo. Deve sentir pena das pessoas tristes e compreender o imenso vazio dos solitários. Deve gostar de crianças e lastimar as que não puderam nascer.
Procura-se um amigo para gostar dos mesmos gostos, que se comova, quando chamado de amigo. Que saiba conversar de coisas simples, de orvalhos, de grandes chuvas e das recordações de infância. Precisa-se de um amigo para não se enlouquecer, para contar o que se viu de belo e triste durante o dia, dos anseios e das realizações, dos sonhos e da realidade. Deve gostar de ruas desertas, de poças de água e de caminhos molhados, de beira de estrada, de mato depois da chuva, de se deitar no capim.
Precisa-se de um amigo que diga que vale a pena viver, não porque a vida é bela, mas porque já se tem um amigo. Precisa-se de um amigo para se parar de chorar. Para não se viver debruçado no passado em busca de memórias perdidas. Que nos bata nos ombros sorrindo ou chorando, mas que nos chame de amigo, para ter-se a consciência de que ainda se vive.

http://www.secrel.com.br/jpoesia/vm4.html#procura

Timor


Jorge Lauten

Não Mais Sob a Árvore de Bô

Não mais a pureza de Ramahyana
o incenso e o sândalo
os pés nus nas pedras do templo

enquanto eles comerem na minha mesa
na velha casa de Dili

não mais me sentarei sob a árvore de Bô


http://www.jornaldepoesia.jor.br/jo02.html

15 maio 2006

Portugal

Meco - Praia das Bicas

Eugénio de Andrade (19/01/1923-13/06/2005)

Mar de Setembro

Tudo era claro:
céu, lábios, areias.
O mar estava perto,
Fremente de espumas.
Corpos ou ondas:
iam, vinham, iam,
dóceis, leves, só
alma e brancura.
Felizes, cantam;
serenos, dormem;
despertos, amam,
exaltam o silêncio.
Tudo era claro,
jovem, alado.
O mar estava perto,
puríssimo, doirado.

http://www.jornaldepoesia.jor.br/eda.html


13 maio 2006

Brasil


Carlos Drummond de Andrade
Itabira (31/10/1902-17/08/1987)

Hino nacional

Precisamos descobrir
o Brasil!
Escondido atrás
as florestas,
com a água dos rios no
meio,
o Brasil está dormindo,
coitado.
Precisamos colonizar
o Brasil.
O que faremos
importando francesas
muito louras, de pele
macia,
alemãs gordas, russas
nostálgicas para
garçonetes dos
restaurantes noturnos.
E virão sírias fidelíssimas.
Não convém desprezar as japonesas...
Precisamos educar
o Brasil.
Compraremos professores
e livros,
assimilaremos finas
culturas,
abriremos dancings e
subvencionaremos as
elites.
Cada brasileiro terá sua
casa
com fogão e aquecedor
elétricos, piscina,
salão para conferências
científicas.
E cuidaremos do Estado
Técnico.
Precisamos louvar o
Brasil.
Não é só um país sem
igual.
Nossas revoluções são
bem maiores
do que quaisquer outras;
nossos erros também.
E nossas virtudes? A
terra das sublimes paixões...
os Amazonas
inenarráveis... os
incríveis João-Pessoas...
Precisamos adorar o
Brasil!
Se bem que seja difícil
compreender o que
querem esses homens,
por que motivo eles se
ajuntaram e qual a razão
de seus sofrimentos.
Precisamos, precisamos
esquecer o Brasil!
Tão majestoso, tão sem
limites, tão
despropositado,
ele quer repousar de
nossos terríveis carinhos.
O Brasil não nos quer!
Está farto de nós!
Nosso Brasil é no outro
mundo. Este não é o
Brasil.
Nenhum Brasil existe. E
acaso existirão os brasileiros?
Eduardo Alves da Costa

Quanto a mim, sonharei
com Portugal
Às vezes, quando
estou triste e há silêncio
nos corredores e nas
veias,
vem-me um desejo de
voltar
a Portugal. Nunca lá
estive,
é certo, como também
é certo meu coração, em
dias tais,
ser um deserto.

http://www.jornaldepoesia.jor.br/drumm1.html#hino

Bati no portão do tempo perdido, ninguém atendeu.

Bati segunda vez e mais outra e mais outra.

Resposta nenhuma.

A casa do tempo perdido está coberta de hera

pela metade; a outra metade são cinzas.

Casa onde não mora ninguém, e eu batendo e chamando

pela dor de chamar e não ser escutado.

Simplesmente bater. O eco devolve

minha ânsia de entreabrir esses paços gelados.

A noite e o dia se confundem no esperar,

no bater e bater.

O tempo perdido certamente não existe.

É o casarão vazio e condenado.

Carlos Drummond de Andrade

de:INÊS 7.º2." 2/6/2006
02 Junho, 2006 13:53

Moçambique

Gaza

Mia Couto
Beira (1955)

Companheiros

quero
escrever-me de homens
quero
calçar-me de terra
quero ser
a estrada marinha
que prossegue depois do último caminho
e quando ficar sem mim
não tereri escrito
senão por vós
irmãos de um sonho
por vós
que não sereis derrotados
deixo
a paciência dos rios
a idade dos livros
mas não lego
mapa nem bússola
por que andei sempre
sobre meus pés
e doeu-me
às vezes
viver
hei-de inventar
um verso que vos faça justiça
por ora
basta-me o arco-íris
em que vos sonho
basta-te saber que morreis demasiado
por viverdes de menos
mas que permaneceis sem preço
companheiros

Angola

Luanda

Agostinho Neto
(Catete-17/09/1922- 1979-Moscovo)

O Choro de África
O choro durante séculos
nos seus olhos traidores pela servidão dos homens
no desejo alimentado entre ambições de lufadas românticas
nos batuques choro de África
nos sorrisos choro de África
nos sarcasmos no trabalho choro de África
Sempre o choro mesmo na vossa alegria imortal
meu irmão Nguxi e amigo Mussunda
no círculo das violências
mesmo na magia poderosa da terra
e da vida jorrante das fontes e de toda a parte e de todas as almas
e das hemorragias dos ritmos das feridas de África
e mesmo na morte do sangue ao contato com o chão
mesmo no florir aromatizado da floresta
mesmo na folha
no fruto
na agilidade da zebra
na secura do deserto
na harmonia das correntes ou no sossego dos lagos
mesmo na beleza do trabalho construtivo dos homens
o choro de séculos
inventado na servidão
e espíritos infantis de África
as mentiras choros verdadeiros nas suas bocas
o choro de séculos
onde a verdade violentada se estiola no circulo de ferro
da desonesta forca
sacrificadora dos corpos cadaverizados
inimiga da vida
fechada em estreitos cérebros de maquinas de contar
na violência
na violência
na violência
O choro de África é um sintoma
Nos temos em nossas mãos outras vidas e alegrias
desmentidas nos lamentos falsos de suas bocas - por nós!
E amor
e os olhos secos.

(Poemas, 1961)

12 maio 2006

Manuela de Abreu, Bela Vista, Huambo, Angola (n.20/06/1939)

Huambo

Manuela de Abreu
Bela Vista, Huambo, 20/06/1939

Pastorela

Sou pastora: guardo poemas
rebanho que a ti me leva
por carreiros doutra vez
que fecundo em cada treva.

Sou pastora: guardo abril
pelas montanhas de lã
e a fartura para abrir
quando o leite diz manhã.

Sou pastora: guardo amor
guardo Angola, aqui por onde
o meu rebanho é de sol
que fecundo em cada fronde.

in "Artes e Letras" d' A Província de Angola, 10/12/1974